Capítulo I
Era uma manhã de primavera como as outras, ouviam-se pássaros cantar, as árvores já haviam começado a brotar flores e já existia movimento pelas ruas da cidade de Londres.
– Pode deixar-me no aeroporto, Senhor taxista – informou Mafalda com um enorme sorriso no rosto ao saber que iria reencontrar o namorado depois de quase quatro meses noutro país.
Mafalda havia perdido o emprego dois dias antes, então decidiu vir passar uns tempos a Portugal. Chegou ao aeroporto, fez todo o procedimento necessário e entrou no avião, sentando-se como de costume no lado da janela. Foi uma viagem agradável, sem muita turbulência. Sentiu um misto de emoções quando chegou a Portugal, poder reencontrar familiares, amigos, voltar a pisar na sua terra natal.
A primeira coisa que fez foi tomar um café na cafetaria da rua de cima e comer uma fatia de tarte de amora, a sua preferida. Às onze horas em ponto, mandou uma mensagem de bom dia ao Simão, como de costume, mas ele não respondeu, viu a mensagem e simplesmente ignorou.
– Estranho… – disse Mafalda – Ele nunca ignora as minhas mensagens.
Chamou um táxi e foi até à casa dele, era mais ou menos quinze minutos de percurso.
Ao chegar, achou estranho o facto de um grande carro branco estar parado à porta de casa, pois ele morava sozinho e não tinha carta de condução. Como sabia exatamente o lugar onde o namorado costumava deixar as chaves da porta, foi buscá-las e entrou.
– Não acredito que isto me esteja a acontecer! Depois de tudo o que passámos juntos… como foste capaz ?! – disse-lhe angustiada e profundamente magoada depois de abrir a porta e deparar-se com o seu namorado e uma das suas amigas abraçados.
– Espera! – chamou Simão, mas ela já havia saído porta fora.
Muito ofendida e de coração partido, decidiu ir até à casa de uma tia, tia essa que sempre cuidou dela, desde pequenina, e dos dois irmãos mais velhos, uma vez que os pais perderam a vida vítimas de afogamento, pouco depois dela completar quatro anos de vida. Cumprimentou todos os que estavam em casa e em vez de ir jantar com eles como sempre fez, foi para o seu quarto. A tristeza que sentiu foi tão grande que não quis voltar para Londres, decidindo, então, ficar uma temporada em Portugal.
Durante uma semana, Simão não havia ligado ou procurado por ela nenhuma vez, parecia estar bem como estava.
Sempre fora uma menina delicada, humilde e muito responsável, preocupando-se com os outros e sempre que conseguia ajudar, fazia questão de o fazer sem esperar nada em troca. Desde os seus quatorze anos, dava sempre uma volta às seis da tarde na praia com os seus irmãos, porque era lá que se sentia segura e os três podiam desabafar com os pais sobre tudo o que sentiam. Apesar dos pais já terem falecido, sentia a presença deles quando via as pequenas ondas darem à costa. Costumava dizer que o que os separava era apenas a linha do horizonte e , que mais cedo ou mais tarde, poderia reencontrá-los e abraçá-los.
Certo dia, sem rumo para onde ir, saiu de casa e foi andando, até que chegou a uma rua estreita e medonha, perto de um grande prédio abandonado.
Havia muita alegria, muita música e as pessoas que lá estavam pareciam estar felizes. Decidiu espreitar para ver de que se tratava. A quantidade de garrafas de vidro, copos de plástico jogados no chão e cheiro a tabaco era absurdo. A música estava tão alta que dava para ouvir a um quilómetro de distância.
– Nunca fui a uma discoteca, é melhor não entrar. – comentou para si própria.
Ao virar as costas para sair, um grupo de jovens agarrou-a pelo braço e perguntaram-lhe se ela queria beber e, mesmo dizendo que não inúmeras vezes, acabou por ceder. Apesar de saber que não devia estar ali sozinha, não sentiu arrependimento, uma vez que já não tinha namorado nem emprego, não tinha nada a perder. Decidiu, então, aproveitar a noite.
A partir daí, todos os fins de semana foram passados nessa mesma rua, com desconhecidos a beber e a fumar, voltando no outro dia de manhã para casa. A menina de olhos verdes, longos e brilhantes cabelos ruivos estava a cada dia mais dependente daqueles vícios. Já não era tão responsável como dantes e as idas à praia diariamente para “falar com os pais” deixaram de existir.
Um certo dia, depois de uma dessas noites de farra, voltou para casa com um amigo que havia feito lá. Era quatro anos mais velho que ela. Ele estava muito embriagado, porém fez questão de a levar a casa. Nesse dia chovia muito e as estradas encontravam-se escorregadias.
Era tarde da noite e as ruas tinham apenas pequenas luzes amarelas, que refletiam para um único ponto no chão.
– Conduz devagar Bernardo, estás visivelmente alterado e as estradas estão perigosas, se alguém percebe que estás a acelerar muito ainda chamam a polícia!
Apesar de todos os avisos que lhe foram feitos, em meio de brincadeira, acelerou e acabou por perder o controlo do carro em uma curva acentuada, batendo numa árvore.
Capítulo II
Quando Mafalda acordou, olhou ao redor, luzes intensas à sua volta, o som da sirene dos bombeiros a ecoar dentro dos seus ouvidos.
Atordoada, mesmo assim, sentiu o seu corpo. À memória vinha-lhe o grito “Cuidado, não aceleres!”. Estava bem e o seu amigo? Bernardo foi levado de ambulância para o hospital, estava ferido, o sangue escorria-lhe pela perna direita – estava inconsciente.
Mafalda na outra ambulância deu entrada nas urgências, estava bem, foi só um susto e um pequeno arranhão na cara, nada de mais. Ela nem sabia bem como tinham lá aparecido os seus tios para levá-la para o aconchego do seu lar, aquele lar que trocava todas as noites por supostos amigos que mal conhecia e por vícios que aparentemente a faziam esquecer as agruras da vida, mas afinal, só as multiplicavam!
Já em casa, soube pelos familiares que Bernardo estava fora de perigo, mas com a sua condição física temporariamente alterada, pois tinha a perna partida e duas costelas, isto impedia que se movesse durante algumas semanas ou meses. Sabia, também, que estava sujeita a um inquérito policial, no dia do acidente o álcool era mais que muito!
Nada acontece por acaso. A sua vida tinha que voltar a ter um sentido e não eram nem o álcool, nem o tabaco, muito menos os falsos amigos que o encontravam. Era apenas dentro de si e cabia-lhe, apenas a ela, definir o seu rumo.
Não, não era a perda de um namorado que a faria perder a sua orientação, não podia ser.
Estava cada vez mais determinada a mudar os seus hábitos:
– Só eu tenho o poder de comandar a minha vida, as minhas emoções e as perdas não podem sobrepor-se aos meus objetivos, ser feliz! – pensava ela na noite em que voltou a casa.
Retomou o costume de ir à praia “falar com os pais” e passear à beira-mar. Como era reconfortante o barulho das ondas a bater na areia… As conversas e reflexões na praia fizeram-na ver que precisava reescrever a história da sua vida.
Inscreveu-se na faculdade, sempre quis ser psicóloga, contudo a vida levou-a a abandonar esse sonho, que agora iria abraçar com todas as suas forças.
Numa das idas à praia Mafalda encontrou Duarte, um dos melhores amigos do seu ex-namorado e também um velho amigo seu. Na verdade, foi ele que a apresentou a Simão.
O jovem de cabelos loiros e olhos azuis estava tal e qual ela se lembrava.
-Duarte, és tu?
-Há quanto tempo Mafalda!
Os dois amigos ficaram a conversar durante horas, o tempo estava mesmo agradável, já parecia um dia de verão.
Após muitas gargalhadas e recordações da época em que andavam juntos na escola, o fim do seu relacionamento veio ao de cima. Ele disse-lhe que sabia da história e que durante o tempo que ela esteve fora em Londres, acompanhou o brotar da relação dos dois. Com o objetivo de a reconfortar, Duarte disse-lhe que ele tinha sido parvo e que ela merecia alguém que desse valor à pessoa incrível que era.
Ao voltar para casa não parava de pensar no Duarte, nas palavras que ele lhe dissera, mesmo estando tanto tempo afastados ela sentia-se tão confortável ao seu lado, parecia que nunca tinham perdido a conexão. Desde aí, começaram a encontrar-se regularmente, ambos gostavam muito do tempo que passavam um com o outro, fazia-lhes bem.
Umas semanas depois, começaram as aulas da faculdade e apesar de ser tudo novo e assustador, ela estava bastante motivada para dar o seu melhor.
No primeiro dia, conheceu algumas pessoas, mas as aulas não correram como esperado. Já tinha perdido o ritmo de estudar, não conseguia acompanhar a aula e os seus apontamentos ficavam todos baralhados, para além de que com tanta coisa que se tinha passado na sua vida, nestes últimos meses, não era fácil que se concentrasse. Todos os dias ao chegar a casa enquanto comia o mesmo lanche de sempre, uma torrada feita na lareira com um leite morno, contava aos tios como corria a sua experiência nesta nova aventura, depois ía dar uma volta à praia com o Duarte, na qual voltava a repetir o que aconteceu no seu dia. Apesar da adaptação estar a ser difícil, tanto os tios como o amigo diziam-lhe para não desistir, visto no início ser normal sentir-se um pouco deslocada, em todos os sentidos.
Capítulo III
Finalmente sexta! Esta estava a ser uma semana extremamente cansativa, pois começaram os testes e os professores estavam a marcar entregas de trabalhos e apresentações. Na hora de saída recebi uma mensagem do Duarte a perguntar se nos encontraríamos mais tarde na praia como sempre. Respondi que sim e alguém, nesse instante, abraçou-me com força por trás, enquanto andava.
– Olá – cumprimentou Daniela e pôs-se a caminhar ao meu lado – Quem era? – perguntou e apontou para o telemóvel que eu ainda segurava na mão.
Daniela era a minha nova amiga e colega de faculdade. Apesar de ser a mais nova da turma, é a mais inteligente e, de vez em quando, ajuda-me com a matéria que não entendi.
– Uma pessoa – respondi e ela levantou uma sobrancelha. – Enfim, gostavas de ir amanhã a minha casa para fazermos o relatório de psicologia? – Questionei, mudando de assunto.
– Pode ser – assentiu, mas agora olhava-me curiosa – Estou lá por volta das duas.
Despedi-me dela e fui direta para casa almoçar e organizar os estudos.
– O que vais fazer amanhã? – perguntou-me Duarte, repentinamente, depois de termos andado cerca de duzentos metros e acabado por nos sentar numas rochas mais afastadas do mar.
– Trancar-me no quarto, estudar, desesperar e acabar na sala a beber uma caneca de chocolate quente – respondi e vi que ele tentava conter um sorriso – Um típico sábado à tarde. E tu?
– O mesmo que tu, mas eu não vou desesperar. Tenho os meus métodos de estudo -respondeu e fiz uma cara carrancuda, o que o fez abrir mais o seu sorriso.
– Engraçadinho – comentei – E para que saibas, eu estou a tentar, OK? Mas ainda não consegui.
Mais tarde, regressei a casa e jantei com a minha família. O meu tio comentou que ia começar a receber um aumento no ordenado e a notícia deixou-nos muito contentes, de tal modo que a minha tia não insistiu que ele ajudasse a arrumar e a limpar a mesa, mandando-o a ele e aos meus irmãos para a sala, para poderem ver o jogo de futebol. Também dispensou a minha ajuda, no entanto recusei e fiquei a ajudá-la.
– Não te importas que convide a Daniela cá a casa para fazermos o relatório de psicologia, pois não? – perguntei à minha tia, enquanto lavava pratos e talheres.
– Claro que não! Acrescentando que na manhã seguinte, o meu tio precisava de ir arranjar uns cabos num poste de eletricidade perto da faculdade e disse: – Aproveito e vou às compras, devo voltar umas duas horas depois. Os teus irmãos também vão ficar aí a estudar nos quartos, não vejo problema em trazeres cá alguém.
De cada vez que olhava para a minha tia notava as grandes olheiras debaixo dos olhos. Ela era muito feliz e estava satisfeita com a sua vida, mas fartava-se de trabalhar para nos conseguir sustentar aos cinco.
– E se amanhã saíres para fazer algo que gostes e no domingo formos as duas às compras? – propus.
– Não, não. Eu disse a mim mesma que amanhã iria às compras, afinal não é assim um programa tão mau. A sério, estou bem – respondeu e saiu da cozinha, encerrando a conversa.
Na manhã seguinte, levantou-se cedo e aproveitou para dar uma caminhada antes de voltar para casa e tomar o pequeno-almoço. Passou a manhã a ler um livro que ensinava maneiras de como ser um bom psicólogo e depois do almoço esperou que a Daniela chegasse.
Às duas em ponto soou o toque da campainha e fui abrir a porta.
Fui logo recebida com um abraço caloroso e deixei-a entrar.
– Os meus tios saíram e os meus irmãos estão nos quartos a estudar, penso que podemos ficar na sala – disse.
Ela sabia da história dos meus pais, por isso, já não fazia perguntas sobre eles.
– Está bem – respondeu. Ficou um minuto calada e olhou em volta antes de perguntar – Com quem estavas a falar hoje à saída?
– Aí, a sério Dani! – reclamei, não queria falar-lhe de Duarte.
– Era o teu namorado? – perguntou e senti que me olhou dentro da alma. Corei um pouco e depois respondi-lhe secamente.
– Não, era só um amigo.
– Ah, vá lá! Eu vi-te com um rapaz no outro dia na praia, era ele? – ela ia mesmo insistir nesta história.
– Era, e assunto encerrado.
Depois do que se tinha passado com Simão, a última coisa que queria era pensar em rapazes e namorar. Pelo contrário, Daniela parecia sempre sonhadora e cheia de vida.
Estivemos a tarde toda a trabalhar no relatório e ela explicou-me muito melhor a matéria. A meio da tarde disse-lhe que ela daria uma excelente professora e a ideia até que a agradou.
Pouco depois de me despedir dela recebi uma mensagem da minha tia a dizer que estava no hospital e que o meu tio tinha caído do escadote, enquanto trabalhava.
Senti as pernas a tremer e por pouco não caí no chão… Fui de imediato avisar os meus irmãos para irmos para o hospital.
Quando lá cheguei senti o telemóvel a vibrar, mas ignorei. Estava mais preocupada em saber onde estava o meu tio. Perguntei a uma enfermeira se sabia onde se encontrava o Senhor Sousa. Ela informou-me que ele tinha caído do escadote a uma altura de cinco metros e que tinha fraturado três costelas e torcido um pé, mas que se encontrava estável e em repouso. Isso fez-me relaxar durante alguns segundos e depois procurei a minha tia que se encontrava às voltas pela sala de espera. Cheguei perto dela e abracei-a, dizendo-lhe que ele estava bem e que não demoraria muito a regressar a casa.
Mais tarde, aconselharam-nos a ir para casa, contudo a minha tia insistiu que ia ficar. Consegui com que cedesse e fomos todos para casa. Antes de me deitar, liguei o telemóvel e vi que tinha duas chamadas perdidas e três mensagens do Duarte, a perguntar se iria hoje à praia.
Capítulo IV
Mafalda ficou muito feliz ao saber que o Duarte se lembrou dela, mas ao mesmo tempo tinha a cabeça em água e não conseguia ter energia para sair naquela altura. Então apenas lhe respondeu às mensagens com um pedido de desculpas e explicou-lhe o que havia acontecido, indo dormir de seguida com a barriga ainda vazia.
Eram sete e meia da manhã, o despertador tocou e Mafalda não queria levantar-se, lutou a noite toda contra o sono e agora o cansaço dominava- a. Já eram oito quando finalmente se levantou e se preparou para ir para a faculdade.
Quando chegou encontrou a Daniela que não sabia do acontecido, porém abraçou-a com o mesmo conforto e aconchego de sempre, o que a fez sentir-se melhor e desabafar com a amiga, que ao ver a sua situação abraçou-a novamente, dizendo-lhe palavras positivas e reconfortantes.
O dia na faculdade não foi fácil para ela, a sua cabeça andava na lua e a pouca concentração que tinha desapareceu por aquelas longas cinco horas. Não tinha escrito nada nas folhas do seu caderno e ao dar a hora de saída despediu-se de Daniela e pediu-lhe os apontamentos.
Chegando a casa, foi diretamente para o seu quarto, beliscou qualquer coisa e deitou-se na cama a pensar. O seu telemóvel tocou, era Duarte preocupado com a sua situação. Perguntou-lhe se queria passear à beira-mar.
Primeiramente não quis, contudo, sabia que o Duarte lhe ia fazer bem, então levantou-se e foi-se encontrar com ele. A tarde passada com o Duarte foi maravilhosa, ele fazia-lhe bem. Mafalda, por instantes esquecia-se dos problemas, porém já era tarde e precisava de regressar a casa e estudar os apontamentos que a amiga lhe havia mandado, então, o Duarte acompanhou-a e despediu-se com um beijo na bochecha, deixando-a corada e mais encantada por ele.
Mafalda entrou em casa e deparou-se com a sua tia a chorar no canto do sofá, questionando-a, de seguida, sobre o que se estava a passar.
A tia respondeu-lhe com a voz fraca:
– O teu tio está a ser operado de urgência, uma das costelas partidas perfurou o pulmão esquerdo, pondo em risco a sua vida.
Mafalda viu novamente o seu mundo desabar. O que parecia ser um assunto banal, uma vez que o seu tio aparentava estar estável, transformou-se em algo mais delicado, o que a preocupou muito. Já com lágrimas nos olhos, tentou confortar a tia, mas acabou por cair num choro incessante, dirigindo-se ao quarto sem comer novamente, passando a noite em branco. Depois de muitas horas, o dia nasceu e os pássaros cantam da forma mais bonita, já não eram sete, nem oito e sim nove horas da manhã e pelo atraso Mafalda já não tinha muita motivação para ir para a faculdade, decidindo ficar em casa, a rever a matéria anterior.
A Daniela não sabia ainda do acontecimento e pensou que fosse apenas uma falta à primeira aula, no entanto ao ver que Mafalda não apareceu, ligou-lhe inúmeras vezes, até que Mafalda atendeu e disse-lhe que não tinha muita disponibilidade para falar.
A amiga respeitou a sua decisão, pois sabia que nestes dias a vida não lhe andava a correr de feição, mas mesmo assim permaneceu preocupada.
Já era final da tarde, quando recebeu a usual mensagem de Duarte a perguntar pelo passeio de todas as tardes. Ela queria visitar o seu tio e pediu para que ele a acompanhasse. Ele aceitou e pelo caminho Mafalda contou-lhe tudo o que havia acontecido e ele mostrou-se preocupado e disponível para apoiá-la.
Chegaram ao hospital e foram diretamente para a sala onde o tio se encontrava, o quarto era no sétimo andar e era compartilhado com outros dois pacientes, separado por cortinas azuis. Faltava uma das macas no canto direito do quarto. Passaram-se quarenta minutos e a visita estava prestes a terminar. O Duarte levantou-se para ir à casa de banho e, no mesmo instante, entra a maca em falta com Simão deitado, de olhos fechados.
Capítulo V
Mafalda ao ver o seu ex-namorado emociona-se e logo se recorda do seu passado. Ao mesmo tempo que sentia um grande aperto no coração por vê-lo daquela forma, a tristeza e a raiva ainda eram sentimentos recentes.
Enquanto Duarte estava na casa de banho, Mafalda sentou-se ao lado da maca de Simão, ele ainda não estava totalmente acordado, então perguntou à enfermeira, que estava a mudar-lhe o soro, o que havia acontecido.
Mafalda descobriu que Simão havia tentado suicidar-se, no hospital não sabiam o motivo, mas ela suspeitava que Francisca, a rapariga com quem ele se havia relacionado enquanto Mafalda estava em Londres, tinha-o deixado.
Ela esperou cerca de quinze minutos, até que Simão ficou consciente, mas como a hora da visita estava a terminar, ela teve de ir-se embora, encontrando o Duarte pelo caminho, e este fez questão de a acompanhar a casa.
O Duarte não tinha visto o Simão e o pouco contacto que tinha com ele já era quase inexistente. Depois de Simão trair a Mafalda, acabou por se afastar, pois Simão estava obcecado pela Francisca.
No dia seguinte, a Mafalda foi à faculdade, pois a matéria não estava em dia devido aos seus assuntos pessoais. Fora um dia difícil tal como os outros. Desde o acidente do seu tio que a Mafalda tem vindo a ter uma rotina conturbada, desde idas ao hospital até passeios na praia com o Duarte, mesmo que esses passeios tomassem um pouco do seu tempo de estudo, ela sentia necessidade de desabafar.
Passadas algumas semanas, o tio da Mafalda finalmente recuperou da cirurgia e recebeu alta. A família ficou muito feliz e organizou um jantar. A comida estava boa e as companhias eram as melhores. Fora um jantar agradável.
Era meia-noite e ouviu a campainha tocar, Mafalda abriu a porta e deparou-se com Simão lavado em lágrimas. Ela não teve reação, todo o passado doloroso e a perda de seu namorado vieram à tona e tentou conter as suas emoções.
Simão pediu para que tivessem uma conversa, ela desconfiou, mas aceitou. Grande erro!
Ele queria desabafar sobre a Francisca, contudo a Mafalda ainda não estava preparada para isso, então pediu-lhe para que se fosse embora, ignorando os seus sentimentos.
No dia seguinte, a Mafalda acordou por volta das dez da manhã, desceu, tomou o pequeno-almoço e voltou para o quarto para descansar, afinal era sábado. Aquela semana tinha sido um misto de emoções.
Quando Mafalda chegou ao quarto, olhou para o seu telemóvel e viu uma chamada não atendida, era Duarte, desta vez convidando-a para vir a sua casa em vez de ir passear à praia.
Mafalda ficou muito surpreendida, nunca tinha ido a casa do Duarte sem ser na companhia do Simão e achou muito querido o convite. Aceitou-o e arranjou-se o mais rápido possível para que ele a viesse buscar.
A tarde foi fantástica, viram um filme, fizeram um bolo e, de seguida, deitaram-se a pensar na vida, no quanto às vezes ela era tão injusta, mas ao mesmo tempo tão justa. Foi uma conversa estranha e já era hora de Mafalda ir para casa.
Duarte ofereceu-se para levá-la, mas Mafalda precisava de passar na padaria, a pedido da tia. A meio do caminho, apercebeu-se que estava sem o seu casaco. Estava escuro e o frio permanecia naquela rua, decidiu então voltar a casa do Duarte para pegar no casaco.
A porta estava semiaberta, então aproveitou para entrar. Para seu espanto, ao entrar, deparou-se com a Daniela deitada no sofá.
Capítulo VI
Mafalda, ficou surpresa ao ver a amiga em casa do Duarte.
– De onde é que vocês se conhecem? – Arqueiou com voz de espanto.
– Mafalda, esta é a minha prima Daniela, vocês conhecem-se? – pergunta, surpreso.
– Sim, é a minha melhor amiga da faculdade! – respondeu Mafalda
Ela já estava atrasada, então despediu-se dos dois amigos. Pegou no seu casaco cinzento e foi para casa, não sem antes passar na padaria para fazer as compras, que a tia lhe tinha indicado. Pelo caminho, não pôde deixar de pensar como era engraçado os seus amigos, serem afinal primos!
Daniela, por sua vez, fez algumas perguntas ao Duarte e facilmente verificou que ele era o tal amigo com quem Mafalda trocava inúmeras mensagens. Apesar de já os ter visto aos dois na praia a passear, não tinha reparado que se tratava dele, uma vez que não tinham muito contacto desde a infância, devido a problemas familiares. Durante alguns minutos, os primos desabafaram sobre o estado lastimável em que a amiga se encontrava, por conta do acidente do seu tio e do desencontro com Simão.
Duarte confessou o seu deslumbre por Mafalda e disse à prima que ainda não tinha avançado com receio de estragar a bela amizade que tinham, e, também, por achar que ela ainda não tinha esquecido totalmente o Simão, afinal, era tudo muito recente! Daniela retorquiu-lhe com toda a sua certeza que Simão fazia parte do passado, ele não era assunto de conversa entre as duas, e quando ela e o Duarte trocavam mensagens, era notório o seu rosto iluminado e o seu ar de boa disposição.
– Faz-te homem primo, avança! disse Daniela entusiasmada com a possibilidade de ver a amiga e o primo juntos.
Depois de uma boa noite de descanso, em que Duarte pensou várias vezes na Mafalda, este decidiu avançar como era sua vontade já há muito… e mais agora com o parecer entusiasmado de Daniela.
Mandou uma mensagem a Mafalda para se encontrarem no lugar do costume, no fim da tarde, como tantas vezes acontecia, já tinha todo um plano para como seria o momento perfeito em que lhe pediria para ser sua namorada, estava tão ansioso!
Eram seis da tarde, o sol brilhava intensamente e o mar sereno convidava para um mergulho.
Duarte chegou à praia e viu o Simão a afastar-se da Mafalda, que teriam estado a falar? Ficou apreensivo… será que avançaria com o seu plano, como o seu coração pedia? Ou deixava a amiga continuar a falar com Simão? Lembrou-se da conversa que teve com Daniela no dia anterior e decidiu arriscar, não sem antes dizer a Mafalda que a tinha visto com o Simão. A Mafalda confirmou-lhe que era já a segunda vez que falava com ele.
Depois da tentativa de suicídio, decidiu ajudá-lo a voltar a ver a vida com um sorriso e a começar de novo, tal como ela já havia feito.
Depois de uma longa conversa, Duarte disse tudo o que sentia à Mafalda. Ela olhou-o com cara de surpresa, pois não esperava aquilo. Não tinha a certeza se queria ter algo com o Duarte, uma vez que este já tinha sido melhor amigo de Simão e o facto de querer dedicar-se à faculdade e seguir psicologia, deixava-a ainda mais apreensiva e pensativa. No entanto, Mafalda abraçou o Duarte e admitiu que também sentia algo forte por ele, comunicando-lhe que não queria ter algo sério tão cedo, pois queria seguir o seu sonho, sem distrações. Mafalda tinha a certeza de que ele a iria compreender, como sempre o fizera até então.
Capítulo VII
Regressando a casa, ela foi estudar e recordou-se da tarde passada com o Duarte. Estava incomodada ao saber como a conversa de ambos tinha ficado, decidindo ir a casa dele para falarem melhor. Ao chegar a casa de Duarte, bateu à porta e, logo de seguida, foi recebida com um grande abraço. Disse-lhe que precisavam de conversar acerca do assunto que ficara pendente. Mafalda disse-lhe que, apesar de estar confusa, o que sentia por ele era algo impossível de esconder e que queria mais que tudo passar os seus dias, a partir daquele, com ele.
O Duarte suspirou, aliviado, e decidiu pedir Mafalda em namoro.
Pouco passavam das 17h30 quando saíram de casa, para passear junto à beira-mar.
Sentia-se um vento calmo que trazia a maresia, ouvia-se as ondas a baterem contra as rochas e o som das pedras a serem arrastadas pelas ondas, um sítio calmo. Era uma região perfeita, Mafalda sentia-se calma. Era como se esse lugar tirasse todos os problemas que tinha consigo, todo o peso que estava a carregar nos ombros. O pôr-do-sol estava lindo e Mafalda iniciou uma conversa com os seus pais, olhando para o mar:
– Não imaginam as saudades que tenho de vocês… se pudessem estar aqui fisicamente comigo a celebrar as minhas conquistas, eu seria muito mais feliz.
Mafalda olhava para o horizonte à espera de respostas, porém, nada acontecia… as águas continuavam iguais sem nenhuma pequena alteração:
Saiu de lá com um aperto no peito, ansiosa, como se alguém a estivesse a sufocar. Sentiu o telemóvel a tocar, era a sua tia:
– Mafalda, o teu tio acabou de sair de cirurgia, os médicos disseram-me que correu tudo bem e que irá acordar daqui umas horas, eu e os teus irmãos estamos a ir para o hospital, vai lá ter também.
A tia expressou aquilo com alegria.
Mafalda, com um sorriso, que preenchia o seu rosto, chorou de alegria e foi o mais rápido possível para o Hospital. Depois de desligar a chamada, despediu-se do Duarte com um beijo e ambos seguiram caminhos diferentes.
Chegou ao hospital, pouco depois das oito da noite. Entrou pela porta principal e avistou várias pessoas sentadas, tristes, com um ar de cansadas. Dirigiu-se à receção, perguntando em que quarto estava o Jorge Sousa.
– O senhor Jorge encontra-se no quarto 147, suba para o quinto andar e vire à esquerda até encontrar o quarto. – expressou a rececionista, que parecia estar muito cansada.
Mafalda encontrou o quarto que tanto procurava.
– Como é que o tio está? – perguntou à tia, que estava sentada numa cadeira junto à janela a ler um livro.
– Está estável querida, espera-se que acorde daqui a pouco.
– Enquanto ele não acorda, vou à casa de banho.
Capítulo VIII
Saiu do quarto e, no mesmo instante, reconheceu Duarte no fundo do corredor. Mafalda pensou para si mesma: “O que é que ele está a fazer aqui? Será que veio visitar o meu tio? Será que me esqueci de algo na praia e ele veio devolver-me ? Tão querido”.
Pensando que ele a procurava, seguiu-o.
Após uma curta caminhada, Duarte entrou numa sala de oncologia. Mafalda sentiu novamente aquela sensação de sufoco que havia sentido na praia. Algo se passava com o namorado e, pelos vistos, era grave.
Quando olhou para dentro da sala para ver o que se passava, ouviu a médica dizer ao Duarte para começar com urgência o tratamento, para tentar travar o avanço daquela doença.
Os exames que ele tinha feito detetaram uma anomalia num dos pulmões, causada pelo tabaco.
– O Sr.Lemos, sabe muito bem o porquê de estar aqui, é com muita pena que lhe digo que, infelizmente, será impossível reverter o seu quadro clínico. O cancro no seu pulmão já está em num estado avançado e o máximo que conseguimos fazer é prescrever-lhe uma medicação para que as dores e as constantes faltas de ar sejam amenizadas. Este é um dos raros casos em que a doença se manifesta muito tempo depois. É um rapaz tão jovem, aproveite a vida enquanto pode, vá à praia, resolva algum conflito que tenha com alguém, não deixe para amanhã o que pode fazer hoje. – afirmou a médica que atendera Duarte, tentando reconfortá-lo.
A Mafalda iniciou um choro agonizante e calado, as lágrimas escorriam pelas suas bochechas, e tornava-se cada vez mais difícil de respirar. Não conseguia acreditar que Duarte lhe escondera algo tão grave.
Mafalda estava atónita com tudo o que ouvia, pois o Duarte nunca lhe tinha dito fosse o que fosse acerca deste assunto.
Nada mais fazia sentido, tudo parecia um ciclo vicioso de dor, sofrimento e angústia incessante. Olhava para o horizonte e sentia-se estúpida e embaraçada. A tia estranhou a sua ausência e decidiu ver se estava tudo bem. Encontrou-a no chão do corredor a chorar desoladamente. Abraçou-a como nunca e sem pronunciar uma única palavra aliviou-lhe parte da dor.
– Só te peço que olhes para a lua, ela nem sempre está cheia. Tudo na vida são fases e o importante é te adaptares e tirar delas o melhor partido possível. – proferiu a tia com um olhar luminoso, apontando para a janela do fundo do corredor.
A conversa fez Mafalda refletir. Foi falar com o Duarte, dizendo que já sabia de tudo e que estaria lá para ele sempre que fosse necessário. Decidiu tornar os últimos momentos da vida de Duarte inesquecíveis, só não sabia como.
Já estava tarde, foi para casa descansar. Ao abrir o guarda-fato para tirar o pijama, já pronta para dormir, deu de caras com uma caixa que havia recebido na semana passada pelo correio, pela sua professora do primeiro ciclo. Com tantos trabalhos e apresentações na faculdade, ainda não tinha sequer aberto. Algo nela incentivou-a a abrir a caixa naquele momento.
Estava repleta com fotos da sua turma da primária. Que emoção! Reviver aqueles dias em que todos sonhavam ser adultos, sem saber que os adultos gostariam de voltar a ser crianças, pelo menos uma vez na vida. Entre as dezenas de fotos, encontrou uma com o Duarte, num passeio a uma pista de gelo.
No mesmo instante ligou-lhe, para se encontrarem no outro dia às onze da manhã na paragem de autocarros. Disse-lhe que era uma surpresa. Apanharam o autocarro das onze e meia e partiram rumo à pista de gelo. Depois foram a uma sorveteria e comeram um gelado.
O céu estava limpo, parecia que o dia tinha colaborado para tornar tudo perfeito. Mas, apesar de tudo isso, ambos sentiam que o fim estava perto. Querendo ou não, mais cedo ou mais tarde, uma linda história de amor estava prestes a encerrar-se.
Mafalda acordou durante a noite com o mesmo sufoco no peito, que vinha a sentir já há alguns dias. Ligou de imediato a Duarte.
Após muitas tentativas angustiantes de o tentar contactar, o telefone é atendido, e a única coisa que lhe é dita é para que ela se dirija ao hospital, porque o Duarte estava internado.
Capítulo IX
Ao chegar, viu o seu amado entranhado de tubos nas cavidades nasais e na boca, fora as aberturas extra necessárias para chegar ao pulmão, local onde o problema se encontrava.
A médica entrou no quarto e juntamente com ela veio uma energia pesadíssima. Preparou-se já para o que iria ouvir. Não conseguia parar de demonstrar preocupação e nervosismo em cada frase que dizia:
– Doutora ajude-me, salve o Duarte! Isto não pode acabar assim, ainda mal vivemos, por favor, não o deixe partir! Por favor, faça alguma coisa, nem que sejam mais dois dias, só não o deixe ir agora!
– Não tenho boas notícias… o Duarte não conseguirá viver por mais de uma semana, a medicação já não está a funcionar – disse-lhe a médica responsável por Duarte.
– O q…qu…ê? – perguntou Mafalda chocada com o que acabara de ouvir.
Tinham-se passado quatro dias, Mafalda não conseguia ir à faculdade, e tinha até deixado de falar com a Daniela, até que sentiu necessidade de um braço amigo, onde pudesse chorar à vontade, sabendo que iria ser consolada e as suas lágrimas seriam enxutas.
A Daniela descaiu-se e acabou por dizer a verdade à Mafalda. Ela já sabia de tudo, apenas não disse nada, porque o Duarte estava extremamente apreensivo e depressivo com toda aquela situação.
– Agora já percebi porque estavas na casa dele naquele dia, agora tudo faz sentido! Como pudeste esconder tudo sem me dizer nada? Não vês como estou a sofrer? Que grande amiga! Não digas mais nada, esquece que eu existo e não me dirijas mais a palavra! – gritou a Mafalda com os olhos cheios de lágrimas, lágrimas estas que sabiam a traição.
Apesar de passar a impressão de que era forte e nada a abalava enquanto dizia aquelas palavras, sentiu-se mal pelo que havia feito, e não sabia o porquê de ter agido de tal forma. Talvez queria arranjar alguém para tirar o peso de culpa de cima de si mesma, ou simplesmente, ao ver os outros sofrer, sentia-se mais aliviada.
Capítulo X
No quarto do hospital, Duarte mergulhou em pensamentos e começou a imaginar como seria o seu futuro com Mafalda se não estivesse doente e, simultaneamente, preocupava-se em privá-la e protegê-la de todo aquele sofrimento que ela presenciava. A dor de num futuro não estar com ela, era mais dilacerante do que toda e qualquer dor física. Então surgiu-lhe uma ideia e decidiu chamar a Daniela ao hospital:
– Prima, preciso de ti mais do que nunca! Dada a minha condição e como não posso sair do hospital, gostaria de fazer um pedido especial à Mafalda, mas conto contigo para trazeres para este quarto um pouco do local onde nos reencontramos, a praia. – disse Duarte esperançoso.
Então, a Daniela dirigiu-se à praia e recolheu areia, búzios e conchas, sendo que nas últimas, havia uma que se destacava por ser bela e rara, a chamada porcelana dourada. No quarto do hospital deitou sobre o parapeito da janela a areia, colocou velas dentro dos búzios e espalhou-as, juntamente com as conchas, por entre cem rosas brancas, que havia comprado, símbolo do amor eterno.
– Daniela do meu coração, necessito de só mais um favor! Preciso que encontres um anel, não de diamantes, mas de uma bela safira azul – disse o Duarte com ar ternurento.
Embora o Duarte outrora tivesse uma vida de excessos, tinha algum dinheiro herdado dos seus avós maternos, por quem nutria grande afinidade e que sempre lhe haviam passado que: “a medida do amor, é amar sem medida”. Deu o seu cartão à prima, e esta dirigiu-se à joalharia do Carmo, que era conhecida como a melhor da cidade, e comprou um anel de ouro branco com uma safira azul de 28 quilates.
Duarte colocou o anel dentro da rara concha, pousando-a na mesa de apoio que ficava encostada ao lado direto da sua cama. Enviou depois uma mensagem à Mafalda, pedindo-lhe que viesse ao hospital urgentemente.
Assim que visualizou a mensagem, a Mafalda apanhou o primeiro táxi que apareceu e mal chegou, entrou apressadamente no hospital. Falou com a secretária que estava no balcão das visitas:
– Boa tarde minha senhora, recebi uma mensagem de um utente que está internado, Duarte Lemos. Na verdade a condição dele não é nada boa, por isso peço-lhe encarecidamente que me deixe vê-lo… – disse Mafalda.
– Lamento muito menina, mas não estamos no horário das visitas e não posso ir contra o regulamento do hospital, mesmo entendendo a sua angústia.
E é aqui que surge Daniela, com uma autorização médica, em que Mafalda estava autorizada a subir.
Subiu. Mal entrou no quarto, vislumbrou aquele cenário, abraçou Duarte e beijou intensamente os seus lábios, ambos se emocionaram e lágrimas escorreram pelos seus rostos.
– Mafalda, és a luz que me guia para o caminho seguro… – disse Duarte, retirando de cima da mesa de apoio a concha e abrindo-a. Mafalda ficou muito surpresa e, ao mesmo tempo, radiante com a magia daquele ato.
– Mafalda quero-me casar contigo, aqui , agora, neste quarto, neste hospital. O azul desta safira simboliza o mar, o nosso reencontro, e não poderia ser outra joia, porque o mar se une ao céu na linha do horizonte e é lá o local mais próximo onde vou estar- verbalizou Duarte, olhando profundamente nos seus olhos. Aceitas?
– Sim, sim eu quero muito casar-me contigo. Quero amar-te sem fim!- respondeu Mafalda.
Chamaram alguém da parte jurídica do hospital, para ajudar na formalização do casamento civil, e o capelão para a cerimónia religiosa, para que Deus abençoasse e selasse o amor dos dois.
No dia seguinte, o quadro de Duarte agravou-se, e ele já tinha sido transferido para a unidade de cuidados paliativos. Mafalda sofria, pois não conseguia deixar o seu amor partir, então apertou fortemente a concha e quando abriu a mão, ao mesmo tempo na sua mente surgiu uma ideia que era uma esperança e simultaneamente iria dar continuidade e deixar o legado do seu amor.
Falou com Duarte e ambos concordaram em colher e preservar o seu sémen. Ele assinou uma declaração de vontade, para que Mafalda pudesse ser inseminada com o seu material genético, após a sua morte. O pedido foi aceite pelo hospital, foi feita a recolha e a congelação.
Duarte já estava com a pulsação muito fraca e a respiração muito ruidosa. Os médicos admistraram-lhe morfina e o Duarte ficou mais sereno. Chamaram todos os familiares, Mafalda, Daniela, o tio, a tia e todos, inclusive a equipa médica e de enfermagem, deram as mãos e fizeram uma corrente à volta da cama de Duarte e pouco a pouco foram assistindo à sua partida serena, em paz e com dignidade.
Ao ouvir o último suspiro de Duarte, Mafalda sentiu-se inútil, mas de certa forma feliz, por ter proporcionado ao marido a sensação de ser amado de verdade, na saúde e na doença.
– Sabe, Mafalda… a primeira coisa que o menino Lemos me disse mal chegou ao hospital, pálido e com a respiração ofegante, foi que a amava. Mostrou-me uma foto sua e disse-me que já sentia que a sua jornada aqui na Terra estava a chegar ao fim e para que quando a menina soubesse que ele havia morrido, nunca se esquecesse que ele a amava incondicionalmente e que estará a olhar por si todos os dias. – disse-lhe uma das enfermeiras, emocionada, que estava a trabalhar na noite em que o mesmo procurou ajuda.
Passaram-se dois meses após a morte de Duarte, Mafalda ganhara forças e estava na hora de seguir com o sonho dos dois. Descobriu que a lei em Portugal prevê a destruição do sêmen, após a morte do respetivo dador. Mafalda inicia então uma corrida contra o tempo, contando com o apoio incondicional de Daniela, para evitar que uma simples lei destrua a única possibilidade de ter um filho do grande amor da sua vida.
Capítulo XI
É engraçado como os dissabores da vida têm o poder de nos tornar mais resilientes, mesmo que, muitas das vezes, não tenhamos a capacidade de o ver.
Era hora de lutar. Lutar por tudo aquilo que Duarte e Mafalda construíram naqueles meses. Lutar por tudo aquilo que acreditam. Lutar pelo amor. Afinal de contas, costumam dizer que a medida do amor é amar sem medida. E era mesmo isso que continuava a fazer sentido na sua vida: o amor.
A safira azul presente no seu dedo anelar brilhava mais do que nunca e era esse brilho que trazia a esperança e a coragem de lutar por um sonho tão sublime.
Mafalda queria fazer-se ouvir por todos, partilhando a sua história com todo o país e, como tal, solicitou a sua ida a um programa de televisão, para que um maior número de pessoas conhecesse a sua vontade e entendesse a sua dor que persistia em não desaparecer.
O dia chegou. Chegara a hora de partilhar com todo o Portugal a lei que tem vindo a destruir o seu sonho, dia após dia, hora após hora. Enquanto Mafalda descrevia o seu eterno amado ao apresentador do programa, as lágrimas escorriam pelo seu rosto, lágrimas essas que simbolizavam orgulho e, ao mesmo tempo, saudade.
Orgulho, por poder ter partilhado uma parte da sua vida com alguém que, apesar das diversidades, tornou os seus dias mais felizes, principalmente quando chegava à hora do tão desejado passeio pela praia.
Entre sorrisos e lágrimas, durante o desenrolar da conversa, o apresentador questionou-a:
– Mafalda, porque é que é tão importante para si lutar contra esta lei?
– Tenho vindo a perder muito na vida e não vou deixar que este nosso sonho, se torne mais uma dessas perdas. Por mim e pelo Duarte. Sim, porque ele está lá. É na linha do horizonte que me reencontro todos os dias com ele. Nunca me esqueço das suas palavras naquele dia tão negro: “O mar se une ao céu na linha do horizonte e é lá o mais próximo local onde vou estar” – respondeu Mafalda com um grande brilho nos olhos, ao se lembrar das palavras do seu amado durante o momento mais agridoce que passou na vida.
Cada palavra proferida por Mafalda, significava verdade e amor. As lágrimas escorriam pela cara do apresentador, pela cara das pessoas que faziam parte do público e, até mesmo, pela cara daqueles que estavam escondidos atrás das câmaras. Receberam uma chamada quase no fim do programa de uma senhora que, passava exatamente pelo mesmo que Mafalda, mas já tinha desistido de lutar:
– Boa tarde, chamo-me Luísa e liguei porque passo pelo mesmo há mais de 5 anos, mas já tinha desistido de lutar. A Mafalda fez-me acreditar de novo. Obrigada. Vamos à luta juntas, com certeza há mais mulheres que passam por isto.
Mafalda sorriu. Sorriu, porque este telefonema significava esperança. Significava também que não estava sozinha nesta luta e isso tornou-a mais confiante. Acabado o programa, entrou em contacto com Luísa e foram à luta. Foram muitos os telefonemas realizados, as entrevistas e as cartas destinadas ao governo. Daniela, que passou a ser um dos grandes pilares da vida da Mafalda, teve a ideia de realizarem uma petição, uma vez que as suas histórias já eram conhecidas em Portugal inteiro e que estavam a receber muito aconchego por parte dos portugueses.
E assim foi. Já era transmitido em todos os ecrãs de televisão, nas rádios e nas redes sociais a petição que pedia à Assembleia da República que discutisse a inseminação artificial com sémen de conjugue falecido. Era inacreditável todo o apoio que estavam a receber, através de cada assinatura, segundo após segundo. Tinha passado pouco mais de uma hora desde que a petição foi criada e já havia mais de 10 mil assinaturas. Cada assinatura significava fé, amor e esperança.
“Almas gémeas nem sempre estão destinadas a ficar juntas para todo o sempre”… esta é a frase que carrega consigo todos os dias.
A Mafalda tem a certeza que neste momento, o marido, o pai e a mãe estão a aplaudi-la lá de cima.